Um convite a reflexão sobre o que está se tornando o carnaval em Salvador.
Abaixo, um texto instigador de Pedro Tourinho (link: http://noticias.r7.com/blogs/pedro-tourinho/reflexoes-de-cinzas/)
Reflexões de Cinzas
Ainda sem sair do universo de entretenimento e mídia, peço licença para abrir uma exceção aos assuntos que normalmente abordo neste blog para falar um pouco sobre o Carnaval de Salvador. Para quem não sabe, além de ser folião desde sempre, já fiz de tudo no carnaval.
Comecei ainda adolescente, fazendo festas. Depois abri uma agência de promoção, e trabalhei em mais outras, fazendo ações de marketing e trazendo investimento de marcas ao carnaval. Já administrei também banda e bloco, quando tive até o prazer antropológico de participar de algumas reuniões da ABT (Associação de Blocos de Trio).
Coordenei o primeiro ano de comercialização do Carnaval de Salvador pelo grupo ABC, de Nizan Guanaes, onde formatamos o projeto "Ouro Negro" e tantos outros. Já me joguei no universo dos blocos Afro, ao colaborar com os 10 anos do Cortejo. Neste último ano desempenhei o papel que faltava, dirigi uma cobertura do Carnaval, a 1a transmissão live do Youtube da maior festa de rua do mundo.
Não vivo do Carnaval, nunca vivi do Carnaval, mas posso dizer que conheço um pouco do assunto.
Este ano, junto com o cansaço e a alegria, a quarta-feira de cinzas trouxe também algumas reflexões sobre a maior festa de rua do mundo. Vamos lá.
Micaretização do Carnaval
Como na mitologia, a criatura voltou-se contra o criador. A solução das micaretas enlatadas (festas indoor, trio parado+abadá, criadas pela industria do carnaval para continuar faturando com os carnavais fora-de-época pelo país) estão dominando uma festa essencialmente popular, que é o carnaval de Salvador. A tónica da folia, que sempre foi a mistura, a diversidade, foi pasteurizada. Mesmos abadás, mesmas músicas, mesmas estratégias. O que são os grandes camarotes senão bolhas de micaretas indoor dentro da folia? A industria do carnaval, seja por preguiça, por limitação, ou por falta de solução mesmo, se viciou neste modelo.
Só que este modelo, é ruim. É predador. Mata a inovação. Satura o público. Não é sustentável. Pode durar mais 2 anos, mais 5 anos, mas não vai nos levar a lugar algum. Lembro de um amigo paulista, que sempre vinha passar o carnaval na cidade. No meio do bloco Eva, ainda com Ivete, chegando ali na praça Castro Alves, ele me disse: nas micaretas em São Paulo tem mais mulher, mais bebida e mais segurança, mas não tem Salvador, essa energia daqui é diferente. Pois é. Essa energia, meu amigo, é o povo, a mistura. Mas a micaretização do carnaval, a mi-caretização, está deixando o povo fora da festa, e nossa festa, de fato, mais careta.
Deixamos de ser acarajé para virar McDonald's.
Cultura do Merchandising
O Carnaval de Salvador tornou-se uma arena bizarra, de uma batalha grotesca das marcas por espaço de merchandising.
Briga-se por cada centimetro de lona impressa. Por cada poste, ou sacada da cidade. Homens segurando balões, vestidos de lata de cerveja, de pernas de pau... Mulheres com os corpos pintados. Brindes, bonés, bandanas, bate-bates, batecas. É uma fábrica de horrores, onde, mais uma vez, o povo, o folião, fica em segundo plano. O importante é ter um bom pós-venda para apresentar na semana seguinte e estar entre os 5 no ranking de exposição de marcas. Isso é insano.
A presença das marcas no Carnaval tem de ser menos merchandising e mais comunicação. Menos relatórios de exposição e mais pesquisa de satisfação.
Como Nizan disse uma vez, não é investir, e sim, retribuir.
As marcas deveriam proporcionar conteúdo e atrações para o carnaval como um todo, baianos e turistas. E não espaço publicitário em blocos. Ouvi dizer que um banco este ano só patrocinou trios elétricos que tocassem sem cordas. Penso que é por aí. Imagine se as grandes atrações, financiadas por grandes marcas, pudessem tocar de graça para o povo?
O povo está espremido entre marcas, placas e cordas. E todo mundo acha isso normal e, até mesmo, positivo. Não faz sentido.
O papel do artista
Se existe alguém que pode mudar a direção deste navio, e desviar o carnaval de salvador do iceberg, esse alguém é o artista. Só eles tem força popular, poder político e volume financeiro dentro da industria para forçar uma mudança de rumo.
Muitos já fazem o que podem. E têm sucesso. Brown toca todos os dias do carnaval sem cordas, no chão, e os momentos mais sensacionais do carnaval acontecem ali. Daniela foi a primeira a levar seu trio sem cordas, com recursos de patrocinadores, para a rua. Mas nem sempre é fácil. Ivete cedeu sua manhã de quarta-feira de cinzas para tocar de graça para o povo que trabalhou enquanto os outros estavam curtindo. E a Banda Eva, já no 2o ano, toca de graça na terça-feira, do Campo Grande à Praça Castro Alves. É só um começo, mas é a prova de que este modelo, que já existe, pode dar certo.
Se cada artista tirar um dia do seu carnaval para tocar para o povo, já seria um grande passo. Vejam bem, não é tocar de graça para o povo, mas sim tocar para o povo, remunerado por marcas. Existem marcas dispostas a financiar isso. Se o artista quiser, faz.
Concluindo, a lógica está invertida, o Carnaval hoje é uma terra sem dono, é um velho oeste tropical onde políticos e empresários fazem o que querem tanto com o povo, quanto com os artistas. E isso tem que mudar.
Pior ainda é o argumento muito utilizado pela industria de que o "carnaval da Bahia é o mais democrático do mundo, porque o rico paga para o pobre." Isso é um jogo de palavras bizarro e manipulador, que institucionaliza a injustiça social e para mim equivale a idéia de que o rico faz bem em jogar lixo no chão para criar o sub-emprego do pobre que tem de limpar.
O carnaval é maior, é do povo e dos artistas, não pode se resumir a uma industria. É preciso uma mudança estrutural na gestão do Carnaval e de quem investe no Carnaval. Não é impossível, mas todos envolvidos, principalmente marcas e artistas, têm de querer comprar essa briga por um carnaval mais sustentável.
Temos que ampliar essa discussão. Trazer gente de bem para a mesa. Fazer acontecer.
Eu tô dentro.
Eu tô dentro.
Ps1.: Andrezão Simões, esse sim especialista no assunto, escreveu um texto excelente sugerindo o modelo de parcerias público-privadas e a criação de uma Fundação do Carnaval, independente do Estado ou do Municipio, gerida com foco na cultura e no Folião. Acho que é por aí, não mudo uma virgula do seu texto. Vale a leitura, clique aqui.
Ps2.: Ricardo Chaves, artista que acompanhou todo esse processo, também escreveu um texto muito interessante sobre como a dinâmica dos camarotes está prejudicando a festa. Para ler, clique aqui
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