Com muita honra, publico este excelente texto da Doutora Gislene Moreira:
Comunicação com farinha
Durante
séculos, a farinha foi um dos principais ingredientes da cozinha baiana. Rica
em sabor e textura, e fruto do suor e sabedoria de nossas gentes, talvez tenha
sido ela a nos dar essa liga em Uauá ou Correntina, Andaraí ou Ituberá. Afinal,
não deve ter sido difícil fazer dessa iguaria de baixo custo e produção
rudimentar um dos elementos centrais na mesa de nosso nascente povo explorado,
silenciado e faminto. A questão é que o uso das novas tecnologias da
comunicação alterou profundamente os ingredientes, a receita e o sabor do nosso
cardápio político e a maioria de nós continuou só na farinha...
No
último século, esse nosso mundo globalizado assistiu a TV, o rádio, a internet,
o celular e mais tantos outros, fazerem da comunicação um fast food.
Esse imenso cardápio de comida a kilo comunicativa não apenas modificou nossa
relação com o tempo e o espaço, como se tornou ferramenta essencial na
consolidação da cidadania e radicalização da democracia. Por exemplo, tanto as
ações de um governo só existem para os cidadãos se forem comunicadas,
percebidas e incrementadas por eles, como as pautas das organizações e
movimentos sociais se legitimam à medida que se inserem na agenda midiática e
da sociedade.
Mas
nem assim a dieta comunicativa do povo baiano sofreu grandes transformações. E,
dificilmente, uma alimentação a base de farinha, mesmo com tamanha criatividade
na invenção dos mais deliciosos pratos, seria capaz de nutrir uma nação
comunicativa (lembrem que não convém abrir a boca ao apreciá-la!). A
comunicação na Bahia foi cozida com a mesma receita que implantou os mecanismos
autoritários e violentos de dominação política e econômica. Uma elite gulosa
cercou a terra, a água, os meios de produção e o aparato público, e guardou na
despensa os meios de comunicação.
A distribuição
desse feijão com arroz ainda nos faz conviver com o sabor amargo e indigesto do
coronelismo eletrônico, resquício da ditadura militar, que vinculou a mídia a
estes poucos grupos e seus interesses políticos. Isso se reflete em uma dieta
extremamente deficiente e pouco variada para a maioria da população. Dados
preliminares apontam que em 37% dos municípios do interior da Bahia sequer há o
gosto de um único veículo local de comunicação. Nas escolas públicas, a merenda
comunicativa dos computadores didáticos chegou a apenas 20%, e a maioria ainda
não tem idéia de como fazer a receita ficar nutritiva. Nas áreas de baixo IDH
ainda não dá para sentir o cheiro da telefonia fixa e internet banda larga. Os hotspot
e a wireless, fundamentais para a ampliação das condições de
navegabilidade eletrônica e convergência tecnológica, são o sorvete nas áreas
de sertão sem energia elétrica e geladeira.
Embora
as políticas de acesso ainda sejam deficientes e extremamente concentradas, não
se pode negar que as vitrines desses novos restaurantes comunicativos se
tornaram sedutoras. Com fome de transformação social, muitos grupos sociais
passaram a questionar a distribuição desse bolo, e mais ainda, pleitearam
ocupar a cozinha. Através da produção de novas mídias, como rádios e jornais
comunitários, cineclubes etc., muita gente passou a criar suas próprias
receitas midiáticas, a colocar na panela o sabor de suas lutas. O resultado foi
um caldo de experiências que permitiram perceber uma comunicação para além da
recepção passiva.
Na
CIPÓ, testamos, inventamos e aprimoramos um monte dessas novas receitas, e
comprovamos o quanto uma comunicação democrática é saudável e saborosa na
garantia dos direitos de crianças, adolescentes e jovens. Não demoramos a
perceber que o uso educativo da comunicação não poderia ficar restrito ao
cardápio dos poucos grupos que conseguíamos atender em nossa sede. Por isso,
nos aventuramos com a idéia de construir junto com algumas comunidades, novas
iguarias de comunicação para o desenvolvimento, em que seus moradores
pudessem agregar seus gostos, seus temperos, seu jeito de fazer, e ajudassem a
botar água no feijão e fazer com que mais gente se apropriasse do processo de
produção em comunicação.
Nesse
caminho, fomos descobrindo que uma cozinha comunicativa mais democrática não
promove apenas a promoção do diálogo e da liga entre pessoas e instituições
locais, mas permite trocar receitas e sabores com outros territórios do mundo
todo. Entendemos também que, apesar de existirem os chefes de cozinha
(comunicadores natos e profissionais), todos nós (sociedade civil), temos um
pezinho nesse ambiente comunicativo e sabemos preparar algum prato ao qual nos
é importante e saudável. Com o tempo, a ampliação e a democratização do acesso
e da produção da informação deixam os quitutes mais saborosos. Assim como o
fogo altera a textura e o sabor dos alimentos, a ampliação dos meios de acesso
e produção ajuda na transformação da informação em conhecimento e favorecimento
da democratização dos espaços e bens públicos.
Essa
comunicação é rica em desenvolvimento pessoal e social, à medida que garante o
aparecimento de novas vozes na arena social, favorecendo, portanto, a formação,
o empoderamento, a articulação e a mobilização dos indivíduos e grupos sociais.
Também nutre uma atuação mais efetiva na esfera pública, facilitando a criação
e consolidação de vínculos e permitindo o exercício da cidadania e da
participação democrática.
Combinada
com a dimensão política, com um toque especial dos movimentos sociais, fortalece
a visibilidade e a incidência da sociedade civil na definição, implementação e
avaliação de políticas públicas. Esquenta a capacidade de articulação e
mobilização da comunidade em torno de suas próprias questões e apura o sabor e
nível ético dos processos políticos.
A
comunicação também é indicada numa dieta de valorização e re-significação da
cultura política e da identidade local, alterando seus referenciais simbólicos
para o fortalecimento de uma imagem local positiva e propositiva. Agrega novos sentidos
a um possível banquete de participação e modos de exercer a cidadania, que pode
fermentar e crescer no nível mais externo, ampliando a capacidade de influência
na esfera de visibilidade pública e, consequentemente, na agenda social e
política do país e do mundo, favorecendo a atração de novos colaboradores,
recursos e oportunidades. Com a difusão de uma imagem forte, a comunicação pode
ajudar na imagem dos empreendimentos e empreendedores locais, agregando valor a
suas iniciativas, e ainda servindo de nova forma de geração de emprego e renda
para os grupos que decidem fazer da cozinha comunicativa seu projeto de vida.
Entretanto,
a parca dieta com a qual fomos acostumados ainda deixa esse novo cardápio longe
da mesa da maioria de nossa gente. Ainda vamos precisar repensar a
descentralização (geográfica), com mais e melhores cozinhas espalhadas por aí,
e a democratização (política) das estruturas de acesso, produção, difusão e
gestão desse imenso cenário gastronômico comunicativo.
Precisamos
de metodologias de formação de novos cozinheiros comunicantes que priorizem a
co-autoria e promovam a relação orgânica entre comunicadores, gestores,
técnicos, lideranças sociais, instâncias públicas e a sociedade. Necessitamos
de políticas públicas que reorganizem a culinária e garantam a abertura, para
que novos canais ecoem os mais diferentes temperos, aromas e conteúdos. Nesse
nosso sucateado parque tecnológico, ainda faltam fornos, panelas, pratos e
talheres. Somos muitos à espera de provar e produzir novos quitutes, em
especial os recheados de tecnologias de acesso e produção de linguagens
convergentes, como a web, podcasts, vídeo, o cinema e a produção
gráfica.
E
quanto mais o tempo passa, mais a fome aumenta, e essa desnutrição mata. Por
isso não dá pra fazer de conta que a comunicação é a cereja do bolo, a azeitona
da empada. Precisamos pensar, construir e implementar políticas capazes de
alimentar, com qualidade nutricional, e mais ainda, fomentar a produção de
alimentos, a distribuição da comida e gestão do cardápio. Não temos receita de
bolo. Só a certeza de que é hora de fazermos da comunicação alimento básico de
nossas lutas diárias, adicionado a nossa boa e velha companheira, que como
diriam os versos do poeta Juraildes da Cruz, famosos na voz de Xangai, se
farinha fosse americana e a mandioca importada, banquete de bacana, era
farinhada.
Gislene Moreira - autora deste texto é Professora do curso de jornalismo da UNEB -
Universidade do Estado da Bahia, e doutora em Ciências Socais com menção
em Política pela Faculdade Latino-America de Ciências Sociais
(Flacso-México). A tese de doutorado sobre leis de meios comunitários na
América Latina foi destaque como um dos melhores trabalhos sobre o
Brasil e América Latina em 2012 (a única em comunicação), no concurso
Flacso-Brasil, Alas e Clacso. Completam minha formação acadêmica os títulos
de mestre multidisciplinar em Cultura e Sociedade pela Universidade
Federal da Bahia (2007), especialista em Gestão Social para o
desenvolvimento pela UFBA (2005) e graduação em Comunicação Social pela
Universidade do Estado da Bahia (2002). Atualmente coordeno o grupo de
Pesquisa COM10! - Comunicação e Cultura para o Desenvolvimento
Sustentável, certificado pela Capes, que trabalha com temas com
comunicação no campo e juventude rural. Também edito a Revista
Científica ComSertões. Já fui assistente de coordenação em projeto de
pesquisa comparada em 04 países junto à Flacso-México e ao Instituto de
Desenvolvimento Regional do Canadá (IDRC), entre outros. Minha
experiência fundamental foi na coordenação de projetos sociais de
educomunicação, comunicação e direitos humanos na Bahia, em ongs como a
Cipó Comunicação Interativa e o MOC - Movimento de Organização
Comunitária. (Texto informado pelo autor)
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